Ilustração de uma escuna de carga do século 19 offshore, com africanos em um barco a remo chegando à costa (© Coleção Histórica/Alamy)
Escuna de carga espanhola Amistad na costa de Long Island, Nova York, em agosto de 1839 (©Coleção Histórica/Alamy)

Em 1839, a escuna de carga Amistad navegou de Havana a Porto Príncipe, Cuba, com 53 africanos rumo a uma vida de escravidão na ilha. Mas enquanto estavam a bordo da escuna, os africanos lutaram por sua liberdade. A batalha lhes proporcionou um alívio. E logo depois, abolicionistas americanos iniciariam sua luta nos tribunais dos EUA.

Desenho de Joseph Cinque segurando bastão (©Arquivos provisórios/Getty Images)
Retrato de Joseph Cinque (cujo nome verdadeiro era Sengbe Pieh), líder da revolta a bordo do Amistad (© Arquivos provisórios/Getty Images)

Os africanos — 49 homens, três meninas e um menino, todos integrantes da tribo mende — tinham sido capturados por negreiros (comerciantes de escravos) portugueses na atual Serra Leoa e vendidos como escravos em Cuba, colônia espanhola naquela época.

Naquela época, os Estados Unidos, assim como a Espanha e outras potências europeias, haviam proibido a importação de escravos. Mas o comércio transatlântico de escravos continuou a ser praticado ilegalmente. Havana, onde os mendes eram vendidos, havia se tornado um importante porto para essa atividade.

Depois de liderar uma revolta sangrenta a bordo da Amistad, Sengbe Pieh* (que recebeu o nome de Joseph Cinque por negreiros espanhóis) ordenou que proprietários de plantações navegassem com a Amistad para Serra Leoa.

Porém, sem o conhecimento de Pieh e dos 41 outros sobreviventes africanos, os proprietários mudaram o curso e conduziram o navio para os Estados Unidos.

Escaramuças jurídicas

A Marinha dos EUA apreendeu a Amistad na costa de Long Island, Nova York, e a rebocou para o estado vizinho, Connecticut.

A chegada da escuna a Connecticut, na região nordeste dos Estados Unidos, deu início a uma batalha diplomática, jurídica e moral. E gerou questionamentos sobre a escravidão que foram direcionados ao Supremo Tribunal dos EUA.

O governo espanhol enviou uma solicitação direta ao presidente Martin Van Buren* para que enviasse os mendes sobreviventes de volta para Cuba. O presidente encaminhou o pedido para o tribunal federal de primeira instância dos EUA ​em Hartford, Connecticut, onde um processo estava pendente para saber se os mendes eram de fato escravos.

Van Buren estava na época da reeleição com pouco apoio devido a uma crise econômica. Ele pensou que uma decisão pró-escravidão o ajudaria a obter aprovação entre os eleitores. Ele estava tão confiante que o tribunal concordaria com as reivindicações espanholas que ele preparou o navio da Marinha para levar os africanos, mantidos em uma prisão em Connecticut durante o processo, de volta a Cuba.

Gravura de africanos acorrentados, nus e amontoados em fileiras estreitas em um espaço pequeno (© Coleção Smith/Gado/Getty Images)
Gravura de africanos acorrentados no porão de carga da escuna Amistad, que media 1 metro de altura, por John Warner Barber em 1900 (© Coleção Smith/Gado/Getty Images)

Mas os abolicionistas levantaram fundos com o intuito de contratar um intérprete para entrevistar Pieh e os outros sobreviventes, e obter ajuda legal do advogado abolicionista Lewis Tappan. Tappan atraiu a simpatia do público para a situação dos africanos.

Para surpresa de muitos, o juiz distrital Andrew Judson apoiou os africanos** (PDF, 824 KB), decidindo em 1840 que eles não eram escravos espanhóis, haviam sido traficados ilegalmente e deveriam ser mandados de volta a Serra Leoa. O governo de Van Buren apelou, mas perdeu.

O governo dos EUA planejou argumentar, em um recurso final à Suprema Corte, que as obrigações em relação aos tratados os forçaram a devolver os africanos a Cuba.

Tappan e o abolicionista Ellis Gray Loring fizeram mudanças importantes em sua equipe jurídica. Contrataram alguém que já havia argumentado anteriormente perante a Suprema Corte, que havia negociado tratados e, o mais importante, que detestava a escravidão.

Um ex-presidente intervém

John Quincy Adams de pé com um braço apoiado em livros empilhados sobre a mesa e a mão esquerda descansa sobre encosto de cadeira (© Arquivo de História Universal/Getty Images)
John Quincy Adams, por volta de 1800 (©Arquivo de História Universal/Getty Images)

Os abolicionistas encontraram todas essas qualidades no ex-presidente John Quincy Adams, que aos 72 anos ainda estava envolvido na política como congressista de Massachusetts. Inicialmente, ele hesitou em discutir o processo dos africanos, mas cedeu, acreditando que se tornaria seu último ato de serviço aos Estados Unidos.

“Agora, nos perguntamos: ‘O que os presidentes vão fazer depois que não forem mais presidentes?’”, afirma John W. Franklin, gerente sênior emérito do Museu Nacional de História e Cultura Afro-Americana do Instituto Smithsoniano. “Este é um exemplo”, diz ele em resposta à pergunta. Adams era um “membro poderoso da sociedade”.

Adams defendeu o caso Amistad em 1841, dizendo que os mendes eram livres e deveriam ser mandados de volta à sua terra natal.

Ele desafiou os Estados Unidos a viver de acordo com seus ideais. “No momento em que você chega às palavras da Declaração de Independência, em que dizem que todo homem tem direito à vida e à liberdade, um direito inalienável, este caso está decidido”, disse Adams. “Não peço nada mais em nome desses homens infelizes [do que] esta Declaração.”

A Suprema Corte ficou do lado de Adams e os abolicionistas levantaram dinheiro para ajudar a mandar para casa os africanos que há muito padeciam. (Alguns morreram de doenças enquanto esperavam o fim dos processos judiciais.) Trinta e cinco africanos, incluindo Pieh, conseguiram retornar a Serra Leoa. (Uma das meninas voltou para os EUA mais tarde para estudar na Faculdade Oberlin em Ohio.)

Por sua vez, Van Buren perdeu sua candidatura à reeleição (antes mesmo do início do caso da Suprema Corte).

Em 1992, a cidade de New Haven, Connecticut, homenageou os sobreviventes africanos do sequestro da Amistad com um monumento de bronze de 4 metros de altura retratando Pieh. Sua forma se ergue orgulhosamente sobre o que tinha sido o local da prisão de New Haven, onde ele e seus companheiros africanos enfrentaram as batalhas jurídicas que acabariam por libertá-los e fortalecer o movimento abolicionista nos Estados Unidos.

* site em inglês
** PDF em inglês

Este artigo foi publicado originalmente em 20 de agosto de 2020.